Contos do Dia

A imperceptível beleza de Anne

Anne Carolaine Deferró era uma jovem donzela, muito feliz, sua beleza era comparada a de uma deusa, alguns até ousavam dizer que ela era uma legítima filha do olímpo.

Seus longos cabelos loiros pareciam ter sidos tecidos por finos fios de ouro, sua pele macia e branca parecia ter sido construída durante uma leve tempestade de flocos de neve.

Dona de uma personalidade sufocante parecia ter comprado para si mesma, toda fonte de orgulho e certeza do mundo.

A maioria dos homens, que entravam em sua presença incomodava-se incondicionalmente com sua existência.

Em uma frustrante tarde de domingo, onde os primeiros raios de sol começavam a desaparecer e os trabalhadores começavam a se lembrar que o seu fim de semana em breve iria acabar. A jovem Anne viu na TV um anúncio que falava sobre um novo salão de beleza. E que seu dono havia criado um estilo totalmente revolucionário de tratar dos cabelos das pessoas.

_Você que se sente excluído, parece que sua vida anda em um grande caos e sente que a grande locomotiva da sua história anda fora dos trilhos, por causa de sua desagradável aparência. _ Venha até o mais novo e belo Salão de Beleza dos kelvins, e faremos que vocês se sintam vivos novamente.

_Mas atenção!!!_ O Salão de Beleza dos Kelvins, só atendera as pessoas que estiverem dentro destes padrões, por favor, não insista...

E foi nesse mesmo momento que Anne teve um instalo em sua mente, como se a semente de uma idéia tivesse sido plantada em sua memória.

_Hum!_Se esse tal de Salão de Beleza dos Kelvins consegue transformar pessoas que são feias em pessoas bonitas, imagina só o que ele pode fazer com as pessoas que já são bonitas como eu, certamente eles me deixariam esplêndida, e eu teria a beleza de uma rainha.

E aquela idéia como uma semente foi crescendo no coração de Anne, e naquela noite ela passou horas e horas em frente ao espelho se imaginando mais bonita do que já era, e aquela idéia foi se expandindo e se tornou um desejo, o desejo foi crescendo e se tornou obrigação. E assim Anne esqueceu-se dos avisos do anúncio que passou na televisão e decidiu que precisava ficar mais bonita, e que assim que o dia amanhecesse iria naquele salão, e pagaria a quantia que fosse preciso, para se tornar mais bonita.

Aquela havia sido uma das noites mais longas de sua vida, pois a ansiedade e a insônia juntas roubaram-lhe o prazer de uma boa noite de sono.

Assim que o dia amanheceu Anne Deferró, arrumou suas coisas normalmente, como se fosse seguir sua velha rotina, colocou o seu uniforme da escola, prendeu seus longos cabelos loiros, e com uma fita azul amarrou seu cabelo fazendo um imenso rabo de cavalo.

_Mãe eu já estou indo.

_Não vai tomar seu café da manhã minha filha?

_Não vai dar tempo, eu já estou atrasada. _ Tchau, eu já vou indo mãe!

Mas naquela manhã, ela estava sem fome, pois a ansiedade e o desejo que se estalou em sua alma, acabaram por matar a fome e sede da jovem donzela. Seu coração agora batia cada vez mais forte, pois já estava bem próximo de chegar ao Salão de Beleza dos Kelvins, e passado mais alguns minutos ela finalmente chegou. Parou confirmou o endereço que havia anotado em um papel, e por alguns segundos se decepcionou, pois a frente do salão era horrível, as paredes laterais estavam pinchadas e o grande vidro fume que dava de entrada para o salão estava muito sujo e rachado. Mas Anne não desanimou, tomou fôlego, e pôs sua pequena mão delicada sobre a maçaneta e a girou.

Ao atravessar a porta do salão, sentiu uma escuridão total adentrar em seus olhos, e de repente faltou-lhe chão para pisar, e ela começo a cair devagar, foi ficando mais rápido e acelerou, seus gritos não faziam eco, pois a escuridão parecia ter serrado suas cordas vocais.   

_Haaaaaa!!!_Socorro!_Alguém me ajude!_Por favor, eu não quero morrer, eu estou cain...

_Moça está tudo bem?

E ao ouvir uma voz suave e bem postada, Anne abriu os olhos e se viu em frente a uma figura bizarra, mas como seus olhos ainda estavam um pouco embaçados ela não conseguiu identificar do que se tratava e nem o local onde estava.

 E aos poucos seus olhos foram ganhando nitidez novamente, e a sua frente viu um homenzinho muito esquisito seu rosto era pálido e carregava profundas olheiras, dando-lhe assim uma sensação de um grande mal estar, seus grandes olhos verdes brilhavam como um pequeno sol em sua face, seus cabelos embaraçados pareciam ter vida e se moviam a cada nova expressão de seu rosto e ganhavam mais vida ainda por conta de seu tom alaranjado.

Mas os olhos destemidos de Anne, não se conformaram apenas com aquele homenzinho bizarro, e por poucos segundos se desviaram dele e então foi o suficiente para que ela contempla-se o lugar.            

Seus espertos olhos azuis vislumbravam aquele lugar como se fosse um grande radar, a fim de detectar seu inimigo, um dourado mais brilhante que o ouro decorava todo espaço, havia cerâmica por todas as partes desde o chão até o teto e os pequenos azulejos de ouro carregavam consigo, uma espécie de símbolo. As tesouras pareciam sapatear em cima das penteadeiras ao som de um bom bolero, com cartolas, luvas e capas, e pareciam estar muito felizes, já as rudes máquinas estavam sentadas na forma de um circulo e pareciam estar jogando algum jogo de aposta, pois assim diziam:

_Mais dez!

_Não eu aposto mais doze!

_Tudo bem então, eu pago.

Os lavatórios eram de ouro maciço e flutuavam adquirindo assim certa distância do chão, e os espelhos do salão não tinham reflexos e eram totalmente escuros.    

_Mocinha você parece não gostar de perguntas, não é mesmo?_Pois você não respondeu a minha...

_Ha!_Me desculpe, é que eu fiquei impressionada com a beleza de seu salão. _ Eu estou bem. _Peço que o senhor me desculpe novamente, e perdoe a minha falta de atenção, vamos começar do zero meu nome é Anne e você certamente deve ser um dos membros da família dos kelvins certo?

_Sim..._Sim..._Senhorita Anne, meu nome é kelvin e sou um dos membros da família dos Kelvins, e a que devo a sua inesperada visita?

_Com todo respeito meu senhor, acho que não precisaria responder a essa pergunta, mas já que o senhor insiste vou lhe responder o óbvio, eu quero ficar mais bonita do que já sou.

Os grandes fios contorcidos do cabelo de Kelvin se esticaram e junto com uma expressão de espanto em sua face ele respondeu:

_Bonita?_Mas que menina mais rude, e olha que acabou de se desculpar. _ Você já é bela menina, que graça tem em ficar mais bela ainda? _A beleza foi feita para ser distribuída, não para ser contida, pois tudo que é demais aterroriza.

_Olha aqui, os meus motivos não importam, eu pagarei o quanto o senhor quiser, e então vai tratar de min ou não?

_Está bem, então me responda apenas a uma pergunta. _ O que vai fazer depois que ficar mais bonita?

_Horas, você fazer perguntas óbvias demais, vou querer ficar mais bela ainda.

Os olhos de Kelvin brilhavam, como se a resposta de Anne fosse um tesouro escondido no terraço, de repetente seu semblante mudou e uma grande calmaria o dominou, seus cabelos contorcidos se abaixaram e a cor de seu cabelo também mudou.

_Me desculpe por tanto incômodo minha senhora, venha nós cuidaremos de você, e redescobriremos a beleza que existe em seu interior.

Anne o seguiu até o lavatório de ouro, com seu pequeno nariz empinado ignorando tudo o que havia acontecido até aquele momento, Kelvin ajuntou suas mãos como se fosse um degrau para que ela pudesse subir no dourado lavatório flutuador, e depois deu um forte assobio, as tesouras, máquinas, secadores e escovas começaram a flutuar ao seu redor.

E como um domador ele cruzou os braços e apenas com a cabeça fez um sinal como se fosse uma ordem e todos os acessórios começaram a rodear Anne, assustada ela o questionou:

_O que está acontecendo? _Esse seu tal método, é mesmo seguro?

E de repente Kelvin deu um salto no ar e como se estivesse voando em câmera lenta, com seus cabelos agora com um tom azul escuro, espalhados pelo ar foi deslizando lentamente ao encontro dela e quando chegou bem perto ele olhou no fundo de seus olhos e disse:

_Seguro?_Só para aqueles que carregam certezas em seu coração, agora chega de papo mocinha e melhor que você feche olhos, pois uma coisa e certa esse método e irreversível só você poderá mudar o fato, se algo der errado.

_Agora vão!!!_E revelem a jovem Anne sua verdadeira beleza perdida.

Após pronunciar tais palavras uma forte luz branca invadiu todo espaço e penetrou nas palpetras fechadas de Anne, e a cegou por alguns minutos. Naquele instante, ela sentiu que algo estava sendo extraído de sua alma e uma saudade profunda começava a invadir seu coração.

O clarão foi passando e sua visão sendo estabelecida, e quando deu por si estava sozinha no salão, o grande lavatório de ouro estava no chão e ainda com um pouco de dificuldade ela se levantou, desesperada procurava por algum espelho para apreciar sua esplêndida beleza perdida, mas se frustrou, os espelhos continuavam escuros.

_Kelvin!!!__Kelvin!!!_Onde está você? _O que a de errado com esses espelhos, por que eles não refletem a minha imagem.

Sem saber que acabara de proferir as palavras mágicas para ativar os espelhos, Anne continuou procurando por kelvin, e de repente como uma cortina a escuridão que cobria os espelhos foi se  abrindo vagarosamente, e os enormes espelhos do salão passaram a refletir. Ela estava indo de encontro a um gigantesco espelho que ficava ao lado da belíssima entrada do salão.

A cada passo que dava, a jovem donzela tentava visualizar sua imagem naquele brilhante espelho cheio de luz e vida, mas era inútil, pois quanto mais se aproximava menos conseguia enxergar, pois o espelho cegava sua visão com seus fortes reflexos que se misturavam com as luzes do salão.Seu coração agora palpitava rapidamente, era a ora da verdade, e o começo de uma nova vida, Anne agora teria a beleza de invejar princesas e rainhas.

_ Onde será que está aquele maluco? _Como ele pode deixar uma dama, como eu aqui sozinha?_Esse espelho brilha demais, e por isso não consegui ver meu reflexo direito, mas agora que estou bem pertinho dele já estou conseguindo enxergar alguma coisinha, mais dois passos eu vou estar cara a cara com ele.

Mas ela mal sabia que esses dois passos lhe trariam a maior dor de sua vida.

_Aqui já deve estar bom, agora vou abrir os  olhos bem devagar, eu adoro surpresas ainda bem que eu me lembrei de fechar os olhos antes de chegar._Ai, eu estou tão emocionada, não vejo a hora de ver a minha beleza que estava perdida.

Foi terrível, ao terminar de abrir seus olhos a jovem menina de cabelos dourados teve uma visão que estremeceu sua emoção, uma mistura de medo, raiva, ódio e rancor invadiu seu coração.

_Haaaaaaaaaa!!!

Seu grito foi tão alto e profundo, que parecia ter rasgado a sua alma, ao contrário do que ela imaginava não foi a forma de uma princesa ou rainha que viu no espelho e sim a imagem de uma menina quase moribunda. Seus cabelos eram embranquecidos como se tivessem perdido sua cor com o passar dos anos, sua pele era enrugada e cheia de feridas, suas vestes rasgadas fediam como as roupas de um mendigo, e seus olhos cansados pareciam estar acesos por uma pequena chama de vida que parecia que a qualquer momento fosse apagar.

_Por que gritas amiga?_Por acaso não lhe agradou, a nossa nova aparência.

Enquanto lágrimas de sofrimento e desespero desciam de seus olhos, Anne falou:

_Isso realmente importa, olha o que eu me tornei uma maldita aberração, eu fui enganada!_Aquele miserável dos Kelvins me enganou, por que você não cala sua boca.

_Você deviria se acalmar amiga, o kelvin apenas fez o seu trabalho.

_Além de ter me deixado ridícula, deve ter me enlouquecido. _Se você é meu reflexo no espelho, como pode estar falando comigo?

_Eu não sou apenas seu reflexo no espelho Aninha, eu sou parte de você sou sua beleza perdida.

_Bela?_Você fede é suja, seus cabelos parecem cebos esticados, seus lábios tremem quando fala, e seus dentes são cariados e podres.

Enquanto Anne gesticulava agressivamente contra sua imagem no espelho, percebeu que sua mão também estava enrugada como a imagem no espelho, e sua pele estava coberta por uma horrível cor acinzentada que parecia estar desbotando.

_Não pode ser, isso é real!_Eu estou igual a você!!!

E as lágrimas começaram a descer novamente dos olhos de Anne, ela se encolheu em um canto e continuou a chorar até que a voz rouca e cansada daquele ser degradante ecoou no ar novamente:

_Não precisa ficar assim Aninha, eu a compreendo, sei que nossa aparência é ruim, mas não precisa ser assim, lembre-se que a beleza esta apenas nos olhos de quem vê e não a ninguém aqui...

_Me deixa em paz, seu monstro!_Basta apenas, que eu esteja aqui...

E aquela horripilante imagem do espelho, deu as costas para ela e também começou a chorar, seu gemido era frágil e parecia ser como o choro de uma criança. Anne se fragilizou, com  as lágrimas da criatura e enquanto a culpa começava a lhe incomodar, levantou-se e com um profundo arrependimento pediu desculpas, pois sabia que havia magoado a pobre e desfigurado imagem do espelho.

_Me desculpe!_Eu não queria ter dito aquilo, é que eu ainda estou muito assustada e confusa com tudo o que esta acontecendo.

E quando aquela terrível figura se virou e olhou em seus olhos, ela sentiu um calafrio que subiu por sua espinha e parou em sua nuca, mas também, viu algo que a encantou.

Aquela desfigurada criatura tinha os olhos doce como o mel, e transmitia a calma e paciência de um eremita. Foi então que Anne reconheceu a sua beleza perdida, entendeu que a Anne do espelho havia se perdido dela mesmo e se tornado um mostro, por que ela havia perdido uma das coisas mais preciosas de sua vida, sua inocência de menina. Ela então passou a valorizar roupas caras, modelos de revistas, e escandalosas atrizes que fazem de tudo para manterem sua fama e fortuna.

_Tudo bem amiga, eu te desculpo. _ Você agora conseguiu se acalmar. _Vejo que começou a entender por que eu estou aqui. _Eu sou sua inocência, doçura, e consciência perdida que em algum momento você esqueceu no labirinto de seu coração. 

_Dentro do meu coração?

_Sim Aninha dentro do seu coração psíquico, aos poucos você se deixou dominar pela artificialidade do mundo. _E se esqueceu que a verdadeira beleza não esta apenas em nossa aparência, está também em nossas atitudes. _ Mas agora você entendeu que assim como você, eu também sou bela, e que é como eu lhe falei que a beleza esta apenas nos olhos de quem vê.

Após dizer tais palavras, a grotesca imagem do espelho foi se transformando e finalmente Anne, tomou sua forma original. Mas ela já não se importava tanto, pois agora seus olhos conseguiam ver a beleza que havia por detrás de carne e ossos, e entendeu que todos os seres, criaturas e formas do mundo têm sua própria beleza, ainda que tenhamos que fazer muito esforço para conseguir enxergar-la, pois essa beleza certamente será uma imperceptível perdida. 

         

  

Levi DS